Polêmica da troca do Hino de Santa Catarina renasce.

Polêmica da troca do Hino de Santa Catarina renasce.

Pela quarta vez em 30 anos, o tema da mudança do hino de Santa Catarina volta à baila, gerando debates, polêmicas e contrapontos no âmbito da política, no meio cultural, na imprensa e, agora, nas redes sociais.

A principal argumentação dos defensores da mudança da letra é que ela, tendo um caráter abolicionista, não fala propriamente de um tema catarinense, já que diz respeito a uma luta de toda a nação, na segunda metade do século 19, pela abolição da escravatura.

Para quem advoga a manutenção do hino original, composto em 1892, o alto valor literário dos versos de Horácio Nunes Pires (1855-1919) e a música excepcional de José Brazilício de Souza (1854-1910) são suficientes para manter tudo como está.

Polêmica do hino de Santa Catarina não é recente

A primeira proposta para alterar a letra foi feita pelo padre Ney Brasil Pereira (1930-2017), em 1992 – ano do centenário do hino. Ele encaminhou ao então governador em exercício, Antônio Carlos Konder Reis, uma exposição de motivos na qual enumerava seus argumentos, porém a ideia não prosperou. Fez o mesmo nos governos seguintes, mas uma posição contrária do CEC (Conselho Estadual de Cultura), durante a gestão de Esperidião Amin (1999-2002), enterrou outra vez a questão.

Em 2010, o deputado estadual Gilmar Knaesel (PMDB) voltou à carga, mas de novo o CEC votou contra a proposta.

A ofensiva mais recente é do deputado Ivan Naatz (PL), que pretende mudar o hino para, segundo sua argumentação, ressaltar “as belezas naturais, a cultura e a história de Santa Catarina”.

O tema da troca do hino envolve aspectos práticos, como a dificuldade de ensinar a empolada letra do hino para as crianças nas escolas, mas também pode esconder questões ideológicas ou de negação da chaga que foi a escravatura no Brasil. No corpo do projeto de lei, o deputado Naatz diz que a letra foi feita num momento muito peculiar do Estado e do país e que não retrata os valores da população de Santa Catarina. Ele também alega que o hino não tem relação com o processo abolicionista, mas com a separação de Portugal, país que teria mantido o Brasil escravizado durante mais de três séculos.

“No fundo, é uma demonstração de racismo”, rebate o cineasta Zeca Pires, que foi contra as propostas anteriores de mudança e argumenta que a Marselhesa, composta num momento histórico crucial da França, tem um tom revolucionário e beligerante – e nem por isso, mais de 230 anos depois de feita, tem sua importância questionada por quem quer que seja.

O estranhamento que o hino catarinense provoca em eventos públicos (incluindo competições esportivas transmitidas em rede nacional) seria fruto da pouca divulgação que é feita dele pelos governos e autoridades.

“Acho a ideia uma bobagem”, diz descendente de compositor

Uma audiência pública foi realizada no dia 15 de agosto na Assembleia Legislativa para discutir a proposta de mudança do hino. A tramitação vai estender até setembro de 2025, após o que, havendo a aprovação do projeto de lei, um concurso público será aberto para a escolha da nova letra. No que depender das entidades que representam historiadores, escritores, músicos e cineastas, por exemplo, a resistência será grande.

“Acho a ideia uma bobagem e me recuso a ir às reuniões convocadas pelo deputado Naatz”, diz Zeca Pires, cujo tio-bisavô, Horácio Nunes Pires, escreveu a letra no final do século 19.

“Além de bonito, nosso hino é o único com foco abolicionista no Brasil. O deputado só quer que os refletores se voltem para ele”.

Também incrédula diante da proposta do deputado, Sueli de Souza Sepetiba, bisneta de José Brazilício de Sousa, conta que em outras oportunidades, na tentativa de mudar o hino, se afirmou que o autor da música não era catarinense e, portanto, não teria conhecimento do Estado e representatividade para assinar uma obra tão relevante. Na verdade, toda a família é de Santa Catarina. José Brazilício nasceu em Pernambuco, de onde veio para o Sul com menos de dois anos, depois que seu pai (José Manoel de Souza Sobrinho, primeiro comandante da PMSC) foi removido, como militar, para a região Nordeste. “E a sua música foi elogiada até pelo compositor do hino nacional, Francisco Manoel da Silva”, diz ela.

“O hino de Santa Catarina é motivo de orgulho catarinense, porque é moderno, de uma visão de estadista”, afirmou o presidente do Conselho Estadual de Cultural, o músico Luiz Ekke Moukarzel. “Mudar isso seria o maior dos absurdos”, afirma. Numa das estrofes, diz a letra: “Quebrou-se a algema do escravo/E nesta grande nação/É cada homem um bravo/Cada bravo, um cidadão”.

Quatro gerações de amor à música

Se a família Nunes Pires teve destaque na imprensa, na literatura e na vida pública de Santa Catarina, o clã que começou com José Brazilício de Souza enveredou pela seara musical.

O filho do autor da música do hino de Santa Catarina, Álvaro Corcoroca de Souza (1879-1939), deixou uma vasta produção, foi professor e instrutor em vários instrumentos e fundou a banda Amor à Arte, que existe até hoje. O filho de Álvaro, Abelardo Souza (1920-1986), foi pianista, compositor, maestro, professor, escritor e jornalista em Florianópolis. Foi ele quem compilou e organizou o espólio de Brazilício, que agora a filha Sueli Sepetiba guarda com zelo e carinho em sua casa.

José Brazilício chegou a ter 18 pianos, que vendeu ou emprestou aos alunos sob a argumentação de que sem o instrumento eles não desenvolveriam a contento o seu talento. O principal deles – um raríssimo Pleyel adquirido em 1884 em Paris – está exposto no térreo do Palácio Cruz e Sousa, na Capital. Embora esteja desafinado e com uma corda quebrada, ele chama a atenção de que visita a casa pela imponência – e por ter sido usado por um músico de ponta, elogiado no Brasil e no exterior.

A bisneta de Brazilício se revoltou ao ver esta semana em uma live que o hino de Santa Catarina foi composto inicialmente para entrar num concurso criado após a proclamação da República para substituir o hino nacional. Mais que isso, o apresentador dizia que esta informação estava numa crônica de Abelardo Souza, o que não confere. “Nem houve a participação no concurso, nem o meu pai afirmou isso no texto”, reagiu Sueli Sepetiba, que também toca piano e participa de atividades musicais na cidade.

Sueli conta que os descendentes de José Brazilício de Souza – incluindo ela e o irmão – cantavam o hino de Santa Catarina na escola e, em casa, ouviam dos pais que o autor era um parente importante que viveu no século 19 e início do século 20. Hoje, ela vê que as músicas do bisavô ainda repercutem. No CD “Memória Musical Catarinense”, de 2002, a Camerata Florianópolis gravou composições de José Brazilício, Álvaro Souza e Abelardo Souza, após pesquisa feita pelo maestro Jeferson Della Rocca e pelo pianista Alberto Heller.

Hoje moradora do bairro Estreito, ela ouve de casa o hino catarinense cantado antes dos jogos do Figueirense no estádio Orlando Scarpelli, após o hino nacional. Como as partidas das competições nacionais têm transmissão pela televisão, brasileiros de outros Estados acabam conhecendo parte da letra de seu bisavô.

Hino gaúcho também é contestado

Escrito em 1892, o hino de Santa Catarina foi sancionado por lei estadual em setembro de 1895 pelo governador Hercílio Luz, em sua primeira gestão – ele voltaria em 1922 para cumprir um segundo mandato, mas morreu dois anos depois, sem ver concluída sua principal obra, a ponte que leva seu nome, ligando a Ilha de Santa Catarina ao Continente. A letra de Horácio Nunes Pires tem foco abolicionista, o que a distingue dos outros hinos estaduais. No Rio Grande do Sul, uma polêmica semelhante mobilizou a opinião pública, no começo deste ano, depois que os deputados cogitaram mudar a letra do hino do Estado por causa de um verso considerado racista (“Povo que não tem virtude/Acaba por ser escravo”).

Em Santa Catarina, de modo geral, a proposta de alterar a letra do hino encontra mais resistências do que apoio, ainda que a população tenha um perfil conservador e possa convalidar a proposta de substituir a defesa dos ideais abolicionistas por um enfoque de louvação das belezas naturais e das características econômicas e demográficas do Estado. A oposição à mudança é mais ostensiva entre os artistas e agentes culturais, que são formadores de opinião.

O HINO DE SANTA CATARINA

Sagremos num hino de estrelas e flores

Num canto sublime de glórias e luz

As festas que os livres frementes de ardores

Celebram nas terras gigantes da cruz

Quebram-se férreas cadeias

Rojam algemas no chão

Do povo nas epopeias

Fulge a luz da redenção

O povo que é grande, mas não vingativo

Que nunca a justiça e o direito calcou

Com flores e festas, deu vida ao cativo

Com festas e flores, o trono esmagou

Quebrou-se a algema do escravo

E nesta grande nação

É cada homem um bravo

Cada bravo, um cidadão

 

 

 

Fonte: ND +

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