Paranaense expulso da escola por perder a visão se torna primeiro juiz cego na Justiça do Trabalho

A trajetória dele é marcada por erros médicos, por dificuldades e rejeição no ambiente escolar, passando pela empatia na universidade e pelo poder da representatividade.

Paranaense expulso da escola por perder a visão se torna primeiro juiz cego na Justiça do Trabalho

O paranaense Márcio Aparecido da Cruz Germano da Silva, de Maringá, no norte do Paraná, se tornou o primeiro juiz cego a atuar na Justiça do Trabalho no Brasil, de acordo com o Tribunal Regional do Trabalho do Paraná (TRT-PR).

A trajetória dele é marcada por erros médicos, por dificuldades e rejeição no ambiente escolar, passando pela empatia na universidade e pelo poder da representatividade que o fizeram chegar a essa conquista profissional.

Aos 44 anos, o magistrado relembrou como foi a trajetória até tomar posse no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo.

Ele conta que, ainda criança, dois erros médicos mudaram a vida dele para sempre.

Aos quatro anos, após a família se mudar para Curitiba, Silva recebeu uma alta dosagem de um medicamento ao qual era alérgico. Como sequela, desenvolveu perda parcial da visão do olho esquerdo.

A família, então, se mudou para Sarandi, cidade ao lado de Maringá. Cerca de quatro anos depois, Silva, ainda criança, perdeu a visão do outro olho.

“Com oito anos, sofro o segundo erro médico por um oftalmologista de Maringá e perco a visão do olho direito, com o qual eu enxergava bem”, relembra.

Expulso da escola

Ao perder totalmente a visão, a escola que frequentava o expulsou sob o argumento de não ter estrutura para ensiná-lo. Silva ficou três anos sem frequentar uma escola.

“Comecei a aprender braile com um amigo da família, o professor Vicente. Quando eu tinha dez anos, fui convidado para estudar na modalidade de ensino integrado em outra escola. Eu só ouvia as aulas regulares pela manhã, pois não tinha cartilha para mim. À tarde, nas aulas de reforço, eu revisava esse conteúdo e escrevia o meu material”, relembra.

Anos depois, Silva ganhou uma bolsa de estudos para fazer um cursinho pré-vestibular em uma instituição privada. Ele conta que nesse momento sofreu os primeiros impactos da desigualdade.

O juiz afirma que a quantidade de horas de estudo na instituição privada era muito maior do que na escola pública de onde veio.

"Ali me deu um certo medo de não conseguir a aprovação no vestibular, pois, apesar da boa vontade do colégio, ele não tinha uma impressora em braile e eles não conseguiram uma parceria para fazer esse material em tempo hábil”, diz.

Após três tentativas, Silva conseguiu a aprovação e se tornou o primeiro aluno com deficiência visual a cursar Direito na Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Injustiças o levaram a escolher o Direito

O magistrado relembra que as situações de injustiças que viveu acabaram colocando o Direito como a única escolha possível.

“Quando sofri o primeiro erro médico, minha família contratou um advogado a quem deveria ser outorgada uma procuração apenas para movimentar o processo, mas ele fez meus pais concederem a ele uma procuração de amplos poderes. Então, tudo que estivesse eventualmente no meu nome, se ele conseguisse um acordo ou qualquer coisa com o médico que cometeu o erro, esse dinheiro ele poderia movimentar livremente. Na sequência, esse advogado desapareceu”, conta.

Silva relembra que na graduação, novamente, se deu conta de que seria muito difícil concluir os estudos. Além da dificuldade de acesso a materiais em braile, o tamanho dos livros jurídicos o preocupava.

“Os livros de Direito são muito extensos. O professor ia fazendo aulas expositivas e quando chegava a hora de estudar para a prova, no final do bimestre, eram 300 páginas de leitura em relação às quais eu não tinha acesso. Eu dependia da leitura dos meus amigos”, conta.

O poder da representatividade

Ainda no primeiro ano da graduação, Silva conheceu Ricardo Tadeu, jurista cego que integrava o Ministério Público do Trabalho. Atualmente, Tadeu é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná.

“Trabalhar com ele me inspirou e me mostrou que seria possível. Aí eu percebi: ‘Bom, se ele conseguiu alguma forma de chegar até lá, eu também posso’. Sempre me inspirei nisso. Então, apesar das dificuldades, eu sempre via além”, relembra.

Para o juiz, conhecer uma pessoa que também tem uma deficiência atuando na área do Direito foi fundamental para aprender lições valiosas.

O maior aprendizado, destaca, foi que utilizar todas as ferramentas possíveis para trabalhar não tira o mérito das conquistas. Por isso, a pessoa com deficiência não deve sentir medo ou vergonha.

Foi com essa motivação que Silva se inscreveu no concurso público para analista judiciário. Com o computador, os estudos ficaram mais fáceis.

Mesmo assim, o acesso aos livros em braile ainda era um problema, uma vez que as obras não eram comercializadas. Ele dependia da doação das editoras.

Apesar das adversidades, Silva se tornou juiz no Brasil. A vaga na Justiça trabalhista foi disputada com quase 17 mil pessoas.

“Foram 229 aprovados, e eu fiquei na posição 81. Mesmo que o concurso preveja a reserva de vagas para pessoas com deficiência, neste concurso a dificuldade foi tão alta que todos os aprovados passaram com as notas mínimas exigidas. Então, não houve de fato a aplicação de reserva de vagas para pessoas com deficiências”, conta.

O dia a dia de trabalho

O juiz afirma que a tecnologia é uma aliada na hora do trabalho no Tribunal.

“Eu faço o uso do computador de forma autônoma, então, eu consigo escrever o que eu quero de forma autônoma. As minhas minutas de voto, as propostas de decisão eu escrevo autonomamente”, conta.

Para agilizar o trabalho, o juiz tem o apoio de uma estagiária de pós-graduação.

“Por exemplo, eu preciso procurar um cartão-ponto em um processo de quatro mil páginas e conferir uma semana específica. Com o leitor de telas eu vou conseguir isso, mas vou levar 15 minutos e eu tenho um monte de voto para fazer. Com um mouse e enxergando, ela vai levar dois minutos. Então ela me passa esse dado e eu faço a qualificação jurídica dele”, explica.

O magistrado diz ter aprendido que utilizar um apoio, tecnológico ou humano, não tira o mérito ou a produtividade da pessoa com deficiência em realizar as coisas.

“Por que o raciocínio jurídico, o conhecimento jurídico é todo meu. A Gabriela, última pessoa que trabalhou comigo, apenas me dava uma informação. E era muito legal por que, por vezes, para me dar uma informação ela tinha uma curiosidade jurídica e eu acabava explicando para ela por que eu precisava daquele dado. Então, era uma troca: ela me dava a informação e eu acabava retribuindo a ela com conhecimento”, lembra.

Para Silva, situações como essa demonstram o quanto a convivência entre pessoas com e sem deficiência é fundamental para quebrar preconceitos e barreiras.

Lugares a serem ocupados

Ciente de que será a primeira pessoa com deficiência a ocupar o cargo, o magistrado garante que não quer ser o único. De acordo com ele, houve um aumento no número de pessoas cegas atuando no Judiciário, mas a presença pode ser ainda maior.

“Eu espero que tenham outros, que essa realidade de multiplicidade dos servidores ocupando os espaços tendo deficiências diversas seja projetada para esses cargos de decisão. Nós ainda somos poucos ocupando esses espaços, mas já melhorou. Espero que daqui a pouco eu esteja dando uma entrevista como essa ao lado de outros colegas”, disse.

O juiz incentiva pessoas com deficiência a acreditar, sim, que é possível e a não desistirem dos sonhos:

"O mais importante de tudo é encontrar o seu método e ter muita decisão na escolha. Toda pessoa com deficiência pode encontrar o seu caminho, desde que seja uma decisão sincera e que entenda que é um projeto e, para conquistá-lo, muitas vezes será preciso renunciar algumas coisas."

G1PR

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